Aprendiz de Sonhador

Era uma bela tarde. Corria o ano de 1964. Aquele garoto, no esplendor dos seus dezoito anos desceu a rua principal de Carmo do Rio Verde; carregava duas malas em punho.
Aquele rapaz partira de Garças de Minas. A viagem de trem, até Anápolis durou mais de dois dias. Dali rumou-se de ônibus até a cidade de Ceres de onde enfrentou mais alguns quilômetros de estrada de terra, até chegar a Carmo do Rio Verde. Hospedou-se na pensão de Dona Amália. Pequena e limpa a pensão possuía apenas meia dúzia de quartos.
O Rio Verde cortava a cidade. Do outro lado da ponte de madeira, a rua íngreme terminava em uma pracinha onde havia uma igreja. Ali o jovem conheceu o pároco, Monsenhor Pedro Verdeck , um holandês bonachão que falava o português com forte sotaque.
Já era noite. De volta à pensão de Dona Amália o jovem depara com meia dúzia de pessoas ladeando a mesa da sala. Ali se encontrava Gercino, o prefeito da cidade. Dona Amália apresentou a todos o novo hóspede que chegara naquela tarde. O prefeito  morava na pensão de dona Amália e era um homem muito simples. Nos finais de semana rumava para a fazenda dos pais lá pelas bandas da mata do Zé Sucuri.
Com o passar dos dias a amizade foi prosperando naquela hospedaria. Do fogão à lenha exalava o aroma dos deuses. O frango, a costelinha, o arroz leve e solto. Até o feijão era colorido pelo indefectível açafrão. Durante os almoços o prefeito dava uma atenção especial aquele curioso garoto. Passados alguns dias estava levando-o a Goiânia para prestar provas, visando exercer o magistério. Em pouco tempo o garoto estava nomeado professor.
A ditadura militar completava mais de um ano. Naquelas bandas de Goiás a caça aos “subversivos” era implacável. Na inocência daqueles seus 19 anos o garoto ainda não se considerava subversivo.
Grande parte do magistério não possuía formação adequada para a difícil arte de ensinar. Metade do corpo docente era formado por homens. Naquela região o nível de analfabetismo era altíssimo.
Distante poucos quilômetros de Carmo do Rio Verde ficava a Vila  São Patrício. A vila era formada por uma escola, três ruas e pouco mais de trinta casas. A escola se chamava “Coronel Mauro Borges Teixeira”, ex- governador de Goiás, perseguido pela ditadura militar.
Aquela pequena vila acolheu, com entusiasmo, o jovem professor. Em menos de um ano o garoto tornava-se diretor.
Naquele sertão o programa “Aliança para o progresso”, patrocinado  pelo governo americano era ostensivo. Os agentes do programa, um casal de jovens norte-americanos, residiam em Carmo do Rio Verde. Aquele garoto desconfiava que os agentes eram da CIA e colaboradores do regime militar.
O prefeito Gercino, em visita àquela escola, comunica ao jovem diretor que os americanos demonstravam interesse em visitá-la. Alguns dias se passaram. De repente surge naquele povoado dois ou três operários vindos de Goiânia. Traziam ordens para desaparecer com o nome do Coronel Mauro Borges Teixeira , gravado na fachada daquela escola. A pequena equipe , munida com escada e escovas de aço desapareceu com aquele nome em poucos minutos, provocando enorme cortina de poeira.
A horta comunitária, construída próxima da escola estava em franca produção. A prefeitura havia fornecido alguns rolos de tela para a proteção daquela área. As verduras e os  legumes enriqueciam a sopa escolar. Parte da produção era entregue aos alunos que levavam-na para a suas casas.
Os americanos chegaram, viram e gostaram. Com a pronuncia fortemente carregada de inglês e uma mistura de espanhol aquele casal de americanos anunciou a doação, àquela escola  de um magnífico conjunto de pratos e talheres.
Naquela escola muitos alunos chegavam no lombo de cavalos. Alguns alunos traziam sacos de esterco para adubar a horta. Outros traziam cachos de banana, frangos colossais e alguns traziam ovos frescos que eram presenteados aos professores.
Era maio de 1966 , o 7 de setembro estava próximo. A escola decidiu enviar cartas para figurões do governo estadual. Naquela carta era solicitada a doação de instrumentos para a formação de uma fanfarra. No dia da pátria, a Vila São Patrício veria algo inusitado. Taróis e caixas-clara forneciam a cadência. Os alunos perfilados e orgulhosos reverenciavam o nosso Brasil. O jovem diretor guardou a certeza de que aquela festa cívica fora a primeira a se realizar naquele pequeno povoado.
A Vila não possuía médico. Uma biblioteca escolar era um sonho distante. Mais  uma vez aquele curioso garoto, em nome da escola, resolve enviar cartas endereçadas  ás grandes editoras. O resultado foi mais que gratificante. Algumas dezenas de livros vieram em doação, iniciando-se ali uma pequena biblioteca. Quanto à falta de médico, os casos menos graves eram  resolvidos pelo Anselmo. Mineiro de Montalvânia, Anselmo e a sua pequena farmácia prestavam inestimáveis serviços à comunidade.
A figura do “meeiro” era parte importante na economia daquela região de terras férteis. Os “meeiros” eram famílias que não detinham a posse da terra. Moravam e produziam nas terras dos grandes latifundiários mediante uma participação na colheita. As famílias viviam felizes com a fartura, os porquinhos no chiqueiro, o paiol abarrotado de milho e galinhas em profusão. A figura do “meeiro” é coisa do passado. Hoje, naquela região, toda a lavoura é mecanizada. Aqueles heróis plantando em terras alheias não existem mais.
Em solenidade naquela pequena escola a turma do 4° Ano primário recebia o almejado diploma. No outro dia o jovem diretor recebera uma carta escrita há mais de vinte dias. O envelope estampava o carimbo da cidade de Arcos. Era uma carta enviada pelo seu pai. Aquela carta trazia agradável surpresa.
Aquele garoto não precisava mais viver foragido. A decisão da justiça, morosa qual passos de um quelônio demorou mais de dois anos. Tempo suficiente para que aquele garoto pudesse mostrar para ele mesmo que, jamais fora um delinqüente, muito menos um subversivo, e sim, um Aprendiz de Sonhador.

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